Primeiro capítulo

Filipe

A minha memória mais antiga é de uma árvore de Natal. Quer dizer, hoje sei que era uma árvore de Natal, mas na altura só me lembro da luz amarelada que envolvia aquele objecto cheio de cores e formas. Acho que estava sentado num carrinho de bebé, preso com o cinto. E, embora me lembre exactamente do que queria dizer, («Olha, mãe, que lindo»), ainda não sabia falar, porque a sensação era a mesma de quando num sonho queremos gritar e não conseguimos. Naquele caso, acho que só consegui emitir sons imperceptíveis. Foi nesse dia que aprendi o que era ser incompreendido. 
Tudo o resto acabou por ser mais do mesmo. Os desenhos na pré-primária que representavam um sem-abrigo a dormir no jardim, e que as educadoras insistiam em dizer que era o menino Jesus nas palhotas; ou as vezes em que carregava a mochila da Patrícia ao longo de três quarteirões, não por gostar dela mas apenas para ver A Mãe, que a esperava à porta do prédio e me agarrava as bochechas com as mãos suaves de unhas encarnadas com aroma a baunilha. 
Coitada da Patrícia... No oitavo ano, após cinco anos de uma espécie de namoro platónico que atravessou a nossa infância e puberdade, disse-me «está bem, podes beijar-me, mas sem língua» e levou uma tampa. Não foi uma tampa porque obviamente não lhe disse a verdade. Tive de inventar que estava com dores de garganta e que até lhe podia pegar e fui a correr para casa masturbar-me a pensar n’A Mãe. Nas semanas seguintes joguei à bola todos os dias depois das aulas e, quando o Inverno começou e não havia jogos, comecei a namorar com a Rita, uma miúda longe de ser bonita, mas com um peito bastante avançado para os seus treze anos. A Patrícia ficou com o coração partido, eu deixei de poder ver A Mãe e ainda fiquei com uma namorada feia, que dava beijos de cinco dolorosos minutos com a língua dura e áspera. Pior, quando quis acabar tudo para bem do meu pescoço, ela deixou-me passar para a fase dois, ou seja, tocar-lhe nas mamas, o que me fez manter o namoro mais uns meses e aprender o que é ter o pescoço dormente. Logo aí devia ter percebido que, 1) as mentiras, por mais pequenas que sejam, só nos arranjam problemas e, 2) o meu futuro com as mulheres não ia ser brilhante.
Como destruí a minha reputação com as miúdas da escola, tive de me refugiar no grunge e na literatura para sobreviver à adolescência. Claro que ia às festas todas e fingia que me estava a divertir imenso nas matinées cheias de fumo e de pessoal a curtir debaixo das mesas. Tinha amigos e até me considerava bastante sociável, mas era no meu quarto que me sentia melhor. Lia, escrevia, compunha melodias estúpidas na guitarra e sonhava com a Liv Tyler do clip dos Aerosmith, com a Vanessa Paradis ou, num estilo mais porco, com a Pamela mesmo. Enquanto a malta fumava haxixe e bebia shots de absinto para ter «experiências diferentes», eu preferia questionar a realidade que nos apresentavam todos os dias nas aulas. Os sistemas políticos permeáveis à corrupção, a subjugação intelectual imposta pelo catolicismo, os interesses económicos que sustentam as guerras. Infelizmente, não tinha muita gente com quem debater esses assuntos. Alguns professores até gostavam dos temas que eu lançava, mas a maioria queria era despachar a matéria e manter-se inquestionável. Aliás, como ainda faz quase toda a gente que conheço.

A única coisa relevante que me aconteceu na adolescência foi a Bé. Conheci-a numa noite de chuva de estrelas em Agosto. Eu estava na casa de férias da família com os meus avós e os meus primos, que eram ainda miúdos. Nessa noite decidi ir dormir na praia para poder ver bem o fenómeno, longe das luzes da vila. Peguei no saco-cama, levei comida para três dias, uma lanterna, o meu caderno e o walkman. Estava deitado de barriga para cima a ouvir a «Polly» quando a Bé se debruçou sobre mim e disse qualquer coisa que não percebi. Vendo bem, ela podia ter gritado, porque naquele momento o mundo parou e eu só via os seus lábios cor-de-rosa mexendo-se suavemente.
– Fogo, pregaste-me cá um susto – exclamei, sentando-me o mais depressa que consegui.
– Desculpa, só queria lume – respondeu numa voz rouca e tão sexy que hoje acredito nunca ter conseguido esquecê-la por causa disso.
– Ah, lume não tenho... Quer dizer, espera, eu trouxe fósforos comigo para fazer uma fogueira.
– Uma fogueira?!
– Claro. Daqui a nada vai estar frio.
– Então faz lá a fogueira para eu poder acender o meu charro.
E assim ficámos, deitados na areia a ver a chuva de estrelas, ela a fumar charros e eu a fingir que não estava absolutamente nada fascinado pela sua sensualidade.
– Porque é que fumas isso? É para fugires de uma realidade sufocante? – perguntei, armado em experiente.
– Claro que não! – exclamou a rir às gargalhadas. – Que cena é essa de as pessoas pensarem que a erva provoca alucinações e nos leva para mundos paralelos e que a malta fuma para não encarar a realidade? A erva apenas me descontrai... O corpo fica leve, como se estivesse a andar nas nuvens, e a mente fica desperta para sensações que normalmente ignoramos: os sons da natureza, os aromas... Gosto de sentir o cérebro a andar a mil à hora e, um minuto depois, ficar em branco. No dia seguinte ponho-me a pensar no que senti e pinto. Não, não tenho uma infância sombria nem uma família disfuncional. Não sou depressiva nem tenho medo de enfrentar a realidade. Só gosto de apanhar umas mocas. Pode ser?
– Acho que sim... Por mim, fuma o que quiseres... – respondi com indiferença. – Eu prefiro a vida a cru. Gosto de estar sóbrio para sentir tudo, sentir que é real; que a vida, o Universo, são reais. Às vezes não pensas que se calhar não estamos mesmo a viver? Que se calhar estamos dentro de um filme ou da cabeça de alguém? E como é que chegámos até aqui? Isto é, a este estádio de evolução. Como é que, por exemplo, Galileu, ao olhar o céu como nós estamos a fazer agora, conseguiu descobrir que a Terra é redonda e teve a audácia de o dizer a toda a gente. Claro que pensaram que era louco. Não pensas nessas coisas?
– Penso! Claro que penso – respondeu entusiasmada. – E sabes uma coisa que me questiono montes de vezes? Como é que sabemos que estamos os dois a ver a mesma coisa? Tipo as cores e assim. Será que a minha camisola é mesmo vermelha ou é apenas o nome que alguém deu a uma cor que o meu cérebro vê a cinzento e o teu a verde? Quem é que decidiu que aquilo é vermelho? E como é que apareceram as palavras?
Durante uns dez minutos o silêncio foi apenas pontuado pelos nossos sorrisos, enquanto pensávamos como é bom encontrar alguém com quem podemos ter estas conversas a roçar o absurdo sem sermos gozados ou olhados de lado. Depois, assim do nada, ela disse:

– És virgem?
– Que raio de pergunta é essa?
– É uma pergunta super-simples. Eu sou virgem, e tu?
– Também – confessei com alguma hesitação.
– Oh, bolas.
– Qual é o problema? Só tenho dezasseis anos, não é assim tão grave. Além disso, a maioria dos meus amigos também é, mas inventam histórias com amigas das primas que ninguém conhece só para parecerem muito experientes.
– Não é isso – suspirou. – É que eu estou desejosa de saber o que é isso do sexo. E, como não tenho ilusões de encontrar um príncipe encantado nem acho que a virgindade seja algo assim tão importante como fazem parecer, gostava de experimentar o mais depressa possível e acabar com o mistério. Mas quero que seja com alguém que saiba o que está a fazer, estás a ver?
– Ah... Bom, costumam dizer que eu aprendo depressa.
– Sim, está bem. Deixa estar. Além disso, eu gosto de ti. Tipo, acho que podíamos ser amigos, ter conversas ao telefone, ir comer um gelado num dia de chuva, ver cinema francês num cineclube snob. Se houver sexo agora, vamos estragar todo o nosso futuro juntos.
– Pior: até podíamos apaixonar-nos!
– Isso, sim, seria trágico. Promete-me – pediu, agarrando-me os pulsos.
– O quê?
– Que nunca te vais apaixonar por mim e que vamos ser sempre os melhores amigos um do outro.
– Combinado.
– Tenho de ir, senão a minha mãe não me vê no quarto e entra em histeria a pensar que fui raptada.
– Vais já? Espera! Como é que te chamas?
– Chama-me o que quiseres – disse, enquanto sacudia a areia das pernas e calçava as sandálias de tiras.
– Vá lá, diz-me. Eu sou o Filipe.
– Até amanhã.
Desapareceu na escuridão a correr como se voasse, os cabelos negros a ondularem ao ritmo dos seus passos.

E pronto. Foi assim que conheci a Bé, a miúda mais fascinante à face da Terra. Passámos o resto do Verão em serões filosóficos, interrompidos apenas pela minha tentativa de a convencer a perder a virgindade comigo, coisa que ela não fez, para grande pena minha. Acabou nos braços de um surfista bem mais velho, que no dia seguinte a evitava, exactamente como ela queria, pois insistia em que o sexo é algo animal e que a ligação emocional que se teima em fazer com ele é apenas uma invenção da literatura. Eu morria de ciúmes, mas não podia mostrar, até porque tínhamos combinado nunca nos apaixonarmos um pelo outro. Também morria de inveja por ela já saber o que aquilo era e eu não. Ela gozava comigo e tentava impingir-me as amigas.
No fim das férias, verificámos que morávamos longe demais para conseguirmos fazer os programas que tínhamos planeado. Decidimos que as cartas seriam a nossa única ligação. Ainda as guardo. Ela escrevia com a alma e mandava-me desenhos fabulosos que ilustravam os seus pensamentos. Quando havia algum acontecimento realmente importante, permitíamo-nos telefonar. Para mim qualquer coisa era um acontecimento importante e nunca conseguia estar mais de um mês sem ouvir a sua voz. Ela fingia que ficava chateada por eu estar a ligar sem motivo válido, mas acabava por me dar conversa durante duas horas. A cada carta e a cada telefonema, eu percebia que estava mais perto de quebrar a única promessa que lhe fizera. A nossa ligação emocional era tão forte que me impedia de me envolver com outras pessoas. Nenhuma delas tinha a voz da Bé, o cabelo da Bé, os lábios rosados da Bé, a inteligência e o humor da Bé.
No Verão seguinte, eu, como sempre, estraguei tudo. Depois do último mergulho do dia deitámo-nos na areia a ver o pôr do Sol. A pele dela, intensamente dourada pela luz de fim da tarde, estava arrepiada. As gotas de água desciam alegremente por cada curva do seu corpo. Ela fechou os olhos para aproveitar o ténue calor dos últimos raios de sol e foi então que a beijei. O corpo dela respondeu e ficámos meia hora enrolados. Eu explodia de desejo, a cabeça andava à roda num turbilhão de emoções. Ela estava calma e etérea como sempre. No fim apenas disse:
– Estás apaixonado por mim. – E antes que eu tivesse tempo de retorquir continuou: – Acho que é melhor ficarmos uns tempos sem nos falarmos para ver se isso te passa e me dás o meu amigo de volta.
– Mas, Bé, porque é que não podemos namorar? Nós somos os melhores amigos, temos química, gostamos de estar um com o outro, é simples!
– Um dia vais perceber que o amor não tem nada de simples – respondeu, levantando-se num ápice. – E quando eu tiver um acesso de mau feitio? E quando tu tiveres uma crise de ciúmes? E quando quisermos estar com outras pessoas? Vamos aguentar? E se um de nós for viver para fora? E se nos apaixonarmos por outra pessoa? O que é que vai ficar entre nós? Desilusão? Rancor? Saudade? Sabes o que é uma pessoa que amas desiludir-te? Não imaginas o que isso é, pois não? É o pior de tudo.
– Então tu preferes passar ao lado do que podia ser o grande amor das nossas vidas só porque tens medo de que a coisa acabe mal e não sobre nada? – perguntei num tom irritado. – É melhor passar o resto da vida em relações falhadas, sempre a pensar no que teria sido, queres ver?
– Quais relações falhadas?
– Olha, do tipo da que tens agora com o Jorge. Ou isso também é uma experiência não emocional? O que é que queres provar a ti própria com essas cenas?
– Nada. Nem a mim nem a ninguém – respondeu com um encolher de ombros. – Apenas adoro a minha liberdade, fazer o que me apetece, com quem me apetece, sem obrigações morais ou emocionais.
– Mas são essas obrigações que nos fazem humanos, não percebes? – gritei, agarrando-lhe os braços. – As pessoas são feitas de sentimentos e, quando há sentimentos entre duas pessoas, sejam amor, ou amizade, ou compaixão, devemos aproveitar para os viver ao máximo em vez de fugir.
– Olha, agora é que disseste a coisa certa: sentimentos de amizade. É isso que nós temos, Filipe. Não queiras perder isso, por favor. – Nessa altura lançou a arma que me retirava qualquer poder de argumentação: o beicinho. – Temos dezoito anos e a vida toda pela frente. Se começássemos uma relação agora, o mais provável seria acabarmos nos próximos cinco anos e nunca mais nos vermos. As pessoas mudam muito na nossa idade. Ficaríamos sem namoro e sem amizade, não percebes? Já viste tudo o que partilhámos desde aquela noite na praia? Tudo o que estaríamos a pôr em causa? Vá lá, deixa de ser infantil. – E com um enorme sorriso terminou a conversa, dizendo: – Se quiseres apresento-te umas amigas bem giras. E fáceis!
– Pois, está bem... Tens cá uma graça... – murmurei, rendido à evidência de que, mais uma vez, não ia ter coragem para lutar pelo que mais queria.
A primeira carta que me escreveu depois dessas férias era a continuação da nossa relação antes do episódio do beijo. Nunca falou do assunto e continuou a contar-me como estava a ser a faculdade de Direito para onde teve de ir para não entrar em ruptura com o pai, que não aceitava o curso de Belas Artes como um curso superior, e outras coisas banais da vida que não me interessavam rigorosamente nada. Até nisso se mostrou melhor do que eu. Para ela, a nossa amizade era tão preciosa que estava empenhada em fazer com que eu a esquecesse e voltássemos a ser «nós». Eu respondi-lhe com uma carta absolutamente patética, composta por uma sucessão de versos de letras de músicas, tipo you gave me nothing now it’s all I got ou I wish I was special, you’re so fucking special e cenas apaixonado-depressivas do género.
Ela nunca mais me respondeu. E eu nunca mais soube nada dela.


in Os 30 - nada é como sonhámos


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