Um Natal português

Esta não é uma noite como as outras. Mais não seja por conter em si a esperança e as promessas de que vai ser especial. É tempo de perdão, de amor, de esquecer as diferenças. No entanto, todos os anos, década após década, observo as mesmas angústias, as mesmas mentiras, as mesmas histórias. Vejo os filhos repetirem os erros dos pais. Vejo os netos a rir com as mesmas brincadeiras que fizeram rir os seus avós. Só muda o tempo, esse que por mim passa tão devagar.

Sete da tarde. 

O ar começa a cheirar a filhoses e lenha.

A rapariga loura limpa as lágrimas e retoca a maquilhagem ao espelho do carro, enquanto o rapaz retira alguns sacos do porta-bagagens. Sem lhe dizer uma palavra fica à espera que ela decida sair, pegue no bebé que dorme no banco de trás e o siga até à porta número sete. Não a via com uns olhos tão tristes desde que os seus cabelos estavam presos em tranças, os joelhos esfolados debaixo do vestido e o cão definitivamente imóvel ao seu colo.

À janela do quarto esquerdo, uma mulher espreita ansiosa entre as cortinas. Ainda faltam muitas horas, ela sabe. Mas não consegue evitar perder o olhar na rua que agora já está escura, ansiando pelos faróis do Ford azul. 

No segundo andar da porta número nove o homem continua no sofá. Já perdeu a conta à cerveja que a mulher lhe vai trazendo a cada grito. A cozinha envolta em vapor, porque o exaustor está avariado há três anos. E ainda tem de fazer as rabanadas.

No quinto está a família feliz. A árvore é a mais bonita, as crianças as mais bem comportadas, os presentes os mais valiosos. Os sorrisos espalham-se à medida que a família vai chegando. Quatro gerações. 

Um carro pára agora à minha frente, mas não é o Ford azul. Dois homens despedem-se com um beijo nos lábios. O condutor segue. O passageiro respira fundo e esconde a aliança no bolso do casaco, enquanto se dirige para casa dos pais, no prédio do lado.

Nove da noite. 

Cai uma chuva miudinha que todos gostariam que fosse neve, menos eu que ficaria com as folhas queimadas. Neve seria, contudo, muito mais romântico.

A rapariga loura voltou a sorrir. O rapaz também, embora a raiva continue a jorrar dos seus olhos. O bebé passa de colo em colo, contagiando toda a gente com a sua inocência, como que a provar àqueles que eram contra a sua existência, o quão mágico é um pequeno ser. A encarnação da esperança. Todas as possibilidades pela frente.

À janela do quarto esquerdo a mulher volta a espreitar uma última vez antes de se sentar sozinha à mesa. Podia ter ido para a terra. É sempre a esta hora que se arrepende de não ter ido para a terra. Mas também, o que dizer àquela gente toda? Como suportar aquelas vidas provincianas, aquelas histórias sempre iguais, aquelas perguntas em tom de crítica.

O homem continua a beber no segundo andar, embora tenha finalmente largado o sofá. Os filhos fingem que não se importam. Têm de sorrir pela mãe, que teve tanto trabalho. E ainda fez as rabanadas que sobram sempre, porque ninguém gosta de fritos.


A família feliz está sorridente a partilhar uma luxuosa refeição. O pai das crianças não pára de mandar SMS por baixo da mesa. A mulher dele finge não perceber. É Natal. É suposto sorrir. A cunhada invejosa não tira os olhos da mulher do irmão, que está sempre tão bem vestida, tão bem arranjada, enquanto ela não tem dinheiro nem para ir fazer as mãos. A matriarca abre os olhos ao marido sempre que ele volta a encher o copo. «Não devias beber tanto. E depois quem é que leva o carro até à Igreja?» Os adolescentes jogam uns com os outros via telemóvel. A avó finge-se de surda e aproveita apenas o lado bom da coisa: ver a família toda reunida, quem sabe se pela última vez. Aproveita também para esconder mais uns figos secos no bolso do casaco, que saboreará quando ninguém estiver a ver.

Na casa ao lado, o homem continua a gabar-se das suas viagens fantásticas e a inventar histórias da namorada parisiense que se está a tornar um caso sério. Talvez para o ano, se tudo correr bem, a convença a vir a Portugal. Os olhos da mãe brilham de alegria. Queria tanto ter um netinho.

Meia noite. 

A hora mágica.

A rapariga loura finge gostar do presente que o rapaz lhe deu. Não quer deitar-se zangada mais uma vez. Ele no fundo é bom rapaz. A sério que é.

A mulher do quarto esquerdo dormita no sofá, enquanto as velas derretem no candelabro. 

No segundo andar, o homem já foi a cambalear até ao quarto, ignorando a abertura dos presentes. A mulher contém as lágrimas. Nem tudo é assim tão mau. Tem os filhos e os netos. Tem de continuar por eles. Amanhã logo se vê.

A família feliz foi quase toda à Missa do Galo. Menos os adolescentes que ficaram a tomar conta dos primos mais novos. Fumam charros à janela enquanto as crianças pulam no sofá, ansiosas e excitadas pelo excesso de açúcar.

O homem do prédio ao lado distribui presentes caros que trouxe das suas viagens exóticas. Mas a mãe só queria um netinho. Ai que ainda vai morrer sem ter um netinho.

Madrugada. 

Cai a neblina.

A rapariga loura pede desculpa ao rapaz assim que entram no carro. Vamos começar de novo. Vamos ter outro bebé. Um bebé resolve tudo, com a sua doçura. Prometo que tudo vai ser diferente.

O Ford Azul chega finalmente. A mulher dá pulinhos à janela. Sabe que não tem muito tempo. Ele disse à outra que ia só dar uma volta para esmoer o jantar. Mas aquela hora chega-lhe. A hora em que finge que são um casal. A hora em que finge ter uma família. Recebe mais uma jóia, quando só queria um pouco mais de amor. Mas não faz mal. Uma hora chega para sonhar. 

No segundo andar da porta número nove a mulher limpa a casa em silêncio. Não pode acordar o marido, senão já sabe o que lhe acontece. Limpa a casa como se limpasse as tristezas da sua vida. São muitas e estão incrustadas como a gordura no exaustor que não funciona há três anos. Engole as lágrimas e as imagens do que poderia ter sido. Haja saúde. O resto a gente aguenta.

A família feliz despede-se. Amanhã o cinismo continuará. Agora cada elemento recolhe, maldizendo os outros durante o caminho até casa. Menos os adolescentes que dormem mais profundamente que as crianças. Uns anjinhos.

O homem do prédio ao lado chama um táxi. Está desejoso de chegar a casa e rir com o companheiro das mentiras que tiveram de contar às respectivas famílias. Riem para disfarçar o desgosto de não poderem passar aquela noite juntos. Talvez para o ano seja diferente. Talvez para o ano tenham coragem.

Uma a uma as luzes apagam-se e os motores dos carros deixam de se ouvir. Passou mais uma noite de Natal. Nenhum milagre trouxe a felicidade instantânea ou a resolução de todos os problemas sobre os quais ninguém quer falar. Daqui a umas horas tudo será como antes. Como sempre.

Aguardo que os primeiros raios de sol aqueçam os meus ramos. Parece que já não vai chover.


Comentários

  1. Gostei muito. Mesmo muito. Escreves muito bem. Parabéns! bjs e força para o desafio que se segue

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