Amigos virtuais


A última vez que estive com os meus amigos mais chegados foi há dois meses. A última vez que estive com outros amigos menos chegados mas de quem gosto muito, foi há um ano ou mais. Sim, é uma vergonha e sim, a culpa é toda minha que não lhes ligo, que não os convido para passarem lá em casa, que não combino um jantar. No meio de dois bebés pequenos, os livros, o trabalho na agência e em casa, os dias passam, o cansaço instala-se e aquele telefonema nunca chega a ser feito.

Podia pôr a culpa nos meus amigos. A maioria deles não tem bebés, nem dois trabalhos como eu. Mas não. A culpa é só minha que não lhes ligo. Porque eles podem não ter bebés, mas têm outras coisas igualmente importantes a preencherem desenfreadamente os seus dias. A preencherem de tal forma que ninguém se lembra de contar há quanto tempo não nos vemos. E as saudades? Será que já ninguém tem saudades? Das conversas, dos abraços, das gargalhadas? Não, ninguém tem saudades e a razão é simples: estamos mergulhados na ilusão de proximidade que as tecnologias nos dão.

Com as tecnologias hoje disponíveis temos a sensação de estar sempre a par de tudo o que os nossos amigos fazem. Sabemos que o João foi passar o fim-de-semana a Paris com a namorada nova, que ainda não conhecemos mas deve ser um amor. Sabemos que o Rita foi jantar fora com os colegas do liceu, que aproveitaram para publicar umas fotografias desses tempos, mostrando (para grande surpresa nossa) que ela usou aparelho e óculos de fundo de garrafa. Sabemos que a Mafalda ficou outra vez presa no trânsito, coitada, mas no fundo não temos assim tanta pena, porque ela bem que podia andar de transportes. Sabemos que o Pedro está a alugar a casa dele, o que significa que, provavelmente, vai mudar-se para casa da Maria - já não era sem tempo. Sabemos que o Diogo e a Teresa vão ter uma menina, que o Augusto mudou de emprego, que a Joana comprou uns sapatos novos e que toda a gente vai ao concerto do ano, menos nós porque não estávamos atentos e agora já não há bilhetes. No fim do dia, desligamos os computadores e os telefones com um sorriso. Os nossos amigos estão bem, pensamos. Estão felizes e viajam e divertem-se imenso. Não nos convidaram porque isso já não se usa. Agora criam-se eventos e faz-se check-in para toda a gente saber onde estamos. Não telefonaram porque fizeram imensos likes nas nossas fotografias, logo, estão atentos ao que fazemos. Não apareceram porque isso é demasiado anos 90. Agora faz-se um Skype ou um Facetime ou um Snapchat ou um vídeo pelo WhatsApp.

Ilusão.

Nenhuma tecnologia substitui o toque, o som de voz e o abraço de um amigo. Nenhum comentário simpático num qualquer post substitui um sorriso cara a cara. E tudo o que achamos que sabemos sobre os nossos amigos através das redes sociais, vem editado pelo filtro da felicidade que todos nós colocámos nas nossas fotografias e palavras virtuais. Ninguém partilha os restos de lasanha que está a comer sozinho à frente da televisão, porque há semanas que não recebe um convite para jantar. Ninguém mostra os olhos inchados de angústia, porque não é suposto sermos fracos e duvidarmos de nós próprios. Ninguém fala das horas a olhar para o telefone que não toca. Estamos a criar uma versão cor-de-rosa das nossas vidas. Vidas falsas, cheias de amigos cada vez mais virtuais, que apenas partilham connosco as suas existências igualmente falsas.

Antes do advento das tecnologias, as pessoas também tinham bebés e empregos e compromissos. Ainda assim, ligavam e apareciam, porque era a única maneira de saber como estavam aqueles de quem gostavam. Arranjavam tempo, provavelmente porque não o perdiam com a cabeça enfiada em aparelhos electrónicos, e apareciam nos cafés, nos restaurantes, nas casas uns dos outros. Apareciam de carne e osso, olhos nos olhos. E telefonavam. E os outros atendiam o telefone, mesmo que as emissões da televisão não pudessem ser paradas. E havia sempre novidades para contar e temas para debater e coisas reais para viver. Se calhar estou a ficar velha e nostálgica, mas a verdade é que tenho saudades dos tempos em que a campainha ou telefone tocavam e não se sabia quem estava do outro lado. Dos tempos em que a minha amiga Laura passava lá em casa depois da escola sem avisar. Dos tempos em que ia sozinha para o café do costume ou para o bar da faculdade porque sabia que ia encontrar lá alguém conhecido com quem falar. Agora tudo isso parece mal. Aparecer sem avisar, telefonar sem hora marcada. E criam-se fossos cada vez maiores, até que o outro lado fica tão inalcançável que deixa de valer a pena o esforço para lá chegar.

Não sou contra as tecnologias. Aliás, até as uso com muito gosto. São elas que me permitem partilhar o que escrevo e falar com os meus leitores. Não acho estranho que nas salas de espera, autocarros ou bancos de jardim, os jornais e os livros tenham sido substituídos por smartphones. É assim mesmo que o mundo avança. Mas acho absurda a necessidade de estarmos sempre ligados, incluindo quando estamos cara-a-cara com os outros. E ainda mais absurdo acharmos que um like, um SMS, um comentário, um desejo de feliz aniversário virtual seja o mesmo que pegar num telefone ou aparecer e conversar. Aquilo que devia estar ao nosso serviço, para nos aproximar, para partilhar, para nos trazer novos mundos e experiências, está afinal a deixar-nos cada vez mais sós. E na verdade, como escrevi no final do meu mais recente livro, de que nos serve vivermos qualquer mundo que seja, se o tivermos de fazer sozinhos?




Comentários

  1. Acabei o texto de olhos aguados. Porque eu sou esta: "Ninguém partilha os restos de lasanha que está a comer sozinho à frente da televisão, porque há semanas que não recebe um convite para jantar. Ninguém mostra os olhos inchados de angústia, porque não é suposto sermos fracos e duvidarmos de nós próprios. Ninguém fala das horas a olhar para o telefone que não toca." Obrigada, Filipa, por escrever o que tanta vez me vai na alma.

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