As borlas


Anda por aí uma moda contagiosa que se chama cravar trabalhos de borla. Vá, eu sei que não é novidade no mundo e que sempre houve e haverá chico-espertos que acham que vão encontrar quem faça isto ou aquilo recebendo quase nada. Quem tem um negócio próprio sabe bem que aparece sempre um amigo a cravar uma imperial ou a achar que tem direito a um exemplar grátis ou a um desconto em nome da amizade. Só que o problema é que passámos do chico-esperto unipessoal para o chico-esperto corporativo.

É que uma coisa é pedirmos ao nosso irmão para tirar umas fotografias para o nosso site ou à nossa amiga que nos ajude a criar um nome para uma loja, outra coisa é serem as empresas a fazer pedidos informais, sobretudo nas redes sociais, camuflados de passatempos ou de oportunidades fantásticas para fazer portefólio, com frases espantosas como "habilita-te a ver o teu trabalho na nossa próxima campanha" ou, para os que têm uma pontinha de vergonha na cara mas não muita, com um "a proposta vencedora será remunerada". Espere lá, senhor director da empresa que gostava de ter um novo logótipo de borla, o que é que é suposto alguém fazer com a fantástica oportunidade de ver as suas horas de trabalho escarrapachadas num cartaz? E no segundo caso, o que é que acontece aos outros novecentos concorrentes que gastaram horas ou dias a trabalhar para si? Ganham o quê? Juízo, certamente.

Trabalhando há mais de 10 anos em publicidade, conheço um sem número de designers, directores de arte, ilustradores, fotógrafos, redactores, arquitectos, locutores que trabalham como freelancers. Ou seja, pessoas criativas que vivem exclusivamente das suas ideias. E, de facto, é mais difícil pôr um preço às ideias do que a um quilo de carne, mas daí a institucionalizar-se o discurso do "ele faz isso em meia-hora" ou "não lhe custa nada, é só uma frase", vai uma grande distância. É que nenhum trabalho, por mais simples que seja, se faz em meia hora, mas ainda que se fizesse, é meia hora que deverá ser paga.

Além da desculpa nojenta do "não temos nada para te pagar, mas sempre ficas com mais um trabalho no portefólio", há outra ainda mais irritante que é a do "trabalhar para nós dá prestígio". Ai dá? Mas sabem o que é que não dá prestígio nenhum? Voltar para casa dos pais porque não se consegue pagar a renda. No meu caso trabalho a tempo inteiro e as coisas que faço ou escrevo, seja no blog, seja nos livros, são por minha conta e risco, isto é, o que vier dali é lucro e sempre dá para fazer mais umas comprinhas ou uns jantares fora. Mas se, de hoje para amanhã, tivesse de viver somente do que escrevo, como é que acham pagava as contas? Será que poderia dizer ao meu senhorio, olhe, este mês não lhe vou pagar a renda, mas está tudo bem, porque afinal é um grande prestígio ter uma escritora a viver na sua casa? Pode ser que a coisa até corra bem e um dia possa colocar uma placa na fachada a dizer "Aqui viveu Filipa Fonseca Silva". Não me parece.

Mas o triste é que quando alguém tem a audácia de responder a um convite para um projecto/palestra/artigo com um "quanto é que estão a pensar pagar", surge o vazio. Literalmente. E depois do vazio, um vazio maior, isto é, acabam-se os convites. Porque há mais quem queira aparecer, ter o tal do prestígio, arruinar o mercado para os outros que se recusam a cair na escravidão. Porque é disso que se trata, não é? Ou o barulho das luzes é assim tão ofuscante que não conseguem perceber?

Comentários

  1. Não podia estar mais de acordo...
    Conheço muito bem o meio da publicidade e a palavra "borlas" é quase tão dita como o "bom dia"..infelizmente. Já ouvi de tudo.."ah convém fazer borlas porque assim a produtora X para a próxima chama-te mas desta vez a receberes ... porque quem não aparece...esquece". Olha merda! É o que apetece dizer...
    Não há dinheiro para as campanhas?! Será que não mesmo?! Será que desde o cliente, agência de publicidade, produtora, agência de modelos, catering, make up, cabelos, electricistas, guarda-roupa e muitos muitos mais...será que estão todos a fazer borlas...ou só alguns?! E as grannnndes marcas não têm dinheiro para pagar?! Somos todos muito burrinhos...ou parecemos...
    Para fazer portefólio para quê? até quando? Começo a acreditar que qualquer dia até para fazer borlas será preciso apresentar portefólio...
    E se assim continuar...teremos que comer portefólio, ir ao banco pagar as contas com o portefólio...e por ai fora.

    Parabéns...belíssimo texto.

    http://ofabulosodestinodemariaamelia.pt/

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  2. Hoje em dia falta mesmo vergonha na cara mesmo! Desde há mais de 10 anos quando procurei trabalho em design gráfico, passei por duas situações caricatas. Uma a perguntarem se não achava se o salario que pedia não era demasiado alto e irreal, como criativa, disse que não. Outra situação foi proporem me fazer uma campanha de supermercado em casa com os meus materiais tempo, para fazer posteriormente uma apresentação, ao que levei uns recortes, mas mais valia ter dito logo que não, porque quando me questionaram o porque do que tinha apresentado e respondi que lá porque estava desempregada e tinha o tempo todo do mundo não podia dispor dos meus materiais, impressões ainda fiquei mal vista porque não fiz o que na mente das pessoas só revelava que não tinha qualidade. Realmente nem devia de lá por os pés, ainda questionei o porque de não colocarem a pessoa a experiência um mês se não servisse, ia embora, mas como tinham de pagar coisa que eles não queriam. Bateram a porta na cara. Hoje em dia é o mesmo, já deixei a area grafica, deviam ao salários baixos, porque acham que bonecos qualquer pessoa faz, mas não é nessa area que trabalhar de graça se usa, se nos apresentássemos em qualquer empresa a pedir trabalho, logo nos dizem não temos como pagar, mas se quiser pode sempre trabalhar, fazer coisas, eles até agradecem, ou nem isso e não dizem que não. Se isto não uma grande falta de carácter, brio, nas empresas, cara de pau, falta de princípios, Já lá vai o tempo em que diziam que não, porque não tinham como pagar o salário digno, agora venha, depois logo se vê ou não vê nada. Longe vai o tempo, em que "não podes fazer, porque não tenho como te pagar", ok eu fazia se queria, hoje está implícito. Nem pedem, deixam para fazer, e temos de adivinhar!

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