Saudades de escrever

Tenho saudades de escrever. 

Eu, que escrevo todos os dias. Títulos, subtítulos, assinaturas, guiões para rádio ou televisão, e-mails, notas, listas de compras...

Talvez seja porque a escrita se tornou mecânica, como respirar, andar ou lavar os dentes. Talvez essa mecanização derive do suporte. O martelar das teclas de um computador nada tem a ver com o som áspero e reconfortante do carvão a fundir-se com o papel, nem com a suavidade de uma simples caneta. Será que ainda é correcto dizer que se escreve, que se é escritor? Penso que deveríamos renomear a actividade para teclar. Sou teclor. Que parvoíce...

Bom, dizia que tenho saudades de escrever. Mas refiro-me a escrever como escrevia há uns anos atrás. Quando achava que tinha o dom de dominar as palavras, de saber exactamente que adjectivo encaixa naquele aroma, que verbo descreve aquela emoção. A petulância da adolescência.

Mas acontece que as obras literárias que passam pelos meus olhos acumulam-se com os anos. Ficam cravadas na memória. São milhares de vidas, de personagens, de lugares, de sentidos explorados por escritores brilhantes e até por escritores banais, mas que escrevem bem. Tantos, tantos, que quando chego a uma página em branco fico com medo. Bom, talvez não seja medo, mas sim vergonha. É que de repente parece que tudo já foi dito.

O que fica para descrever depois de Eça? Que mundos podem ser inventados depois de Lewis Carrol? Que personagens sobram depois de Garcia Marquez? Parece que nada do que eu possa dizer ao mundo vai acrescentar seja o que for a seja quem for. E isso é embaraçoso. Sobretudo numa época em que devemos poupar os recursos naturais do planeta e parar o aquecimento global. Com que lata poderia escrever, publicar, imprimir devaneios irrelevantes como este? Banalidades. Quilos de papel desperdiçados.

Talvez a escrita seja como o Fado. É preciso sofrer para poder cantá-lo. É preciso que a voz guarde uma lamúria, um ressentimento. Ou pelo menos fingir que se sofre. Actuar, encarnar uma personagem. Já dizia Pessoa. 

Tenho saudades de escrever. E o que é que vocês têm a ver com isso?


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