O taxista leitor
No outro dia, fui jantar e beber um copo com uns amigos. Pelas duas da manhã, quando a malta começou a falar em discotecas, decidi retirar-me airosamente, pois, admito, já não tenho pedalada para noitadas e prefiro mil vezes uma noite bem dormida a dançar. Como amigo não empata amigo e o meu marido quis ficar mais um bocado, apanhei um táxi e fui para casa.
Os primeiros dez minutos do percurso foram feitos em silêncio, que eu não sou muito faladora, especialmente quando o meu corpo está em antecipação do momento em que se enroscará no edredon. Mas ao pararmos num semáforo da chamada rotunda do Batista Russo, o taxista que me guiava disse qualquer coisa a que não prestei atenção e, logo depois, murmurou uma frase inesperada.
- Se bem me lembro...
- Desculpe, não percebi.
- Se bem me lembro, era uma frase que o Vitorino Nemésio dizia no seu programa de televisão.
- Ah, claro, Vitorino Nemésio, grande escritor.
- A menina sabe quem é?
- Então não havia de saber? Eu gosto muito de ler e, além disso, também sou escritora - confessei.
- Ai, não me diga! Como é que se chama? - perguntou o taxista, acendendo a luz e olhando para o banco de trás.
- Filipa Fonseca Silva.
- Desculpe, não conheço, mas escreve romances?
- Sim, e olhe, acabei de lançar há uns meses um livro precisamente sobre um táxi.
- Sobre um táxi? Qual é o título?
- Amanhece na Cidade e conta a história de um taxista e das várias pessoas que transporta. Só que a história é contada pelo próprio táxi, o veículo.
- O táxi é que conta a história? Isso é muito original? Não tem um em casa para eu comprar?
- Acho que sim...
- Então eu espero cá em baixo e a menina vai lá buscar que eu quero comprar-lhe o livro. Eu adoro ler. Tenho sempre livros aqui no carro e ofereço alguns aos passageiros - disse entusiasmado, tateando com a mãe esquerda a bolsa lateral da porta, de onde retirou dois livros, um deles, um texto de Platão. - Olhe, este é A Mensagem, do Fernando Pessoa, uma edição baratinha, acho que custou um euro e sessenta. Comprei no outro dia porque o que tinha aqui no carro ofereci a uma senhora brasileira que não sabia quem era o nosso poeta. Assim, olhe, levou o Pessoa para o Brasil para ver se aprende alguma coisa. Levou-o foi todo rabiscado, que eu gosto de escrever nas margens dos livros e sublinhar passagens, sabe?
Chegámos à porta da minha casa e o taxista insistiu para que eu fosse buscar o meu livro, pois queria muito lê-lo. Subi o elevador com um sorriso enorme e o coração acelerado. Estava deslumbrada com o senhor e com a possibilidade de um taxista ler sobre o meu taxista. Quando voltei, convidou-me a sentar no banco do pendura e contou-me histórias de passageiros que o marcaram, como um senhor que se disse descendente da dinastia de Avis e que o levou a ler sobre a nossa monarquia e as diversas casas reais. Ou um músico com quem ficou a conversar durante três horas à porta do hotel.
- E este é o que estou a começar a ler agora - disse, mostrando-me mais uma edição de bolso. - É a obra poética de Camilo Castelo Branco. Eu nem sabia que ele também tinha escrito poemas. A seguir vou ler o seu.
- Espero que goste. E depois gostava que me dissesse o que achou. No final do livro, na página dos agradecimentos, está o meu email. Se, puder escreva-me.
- Escrevo sim, senhora - garantiu-me, enquanto escrevia com um lápis, na última página do livro, «enviar opinião pessoal para este email».
Despedimo-nos como velhos conhecidos. Já eram quase três da manhã quando entrei em casa. O sono passou-me. Fiquei à janela um bocado, a contemplar a noite e a pensar na improbabilidade de encontrar um taxista que ama os livros e que me vai ler. Um taxista que poderia ser, ele próprio, a personagem principal de um livro.
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