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«Pois é minha querida. Aqui estou à espera da morte» suspirou, com o olhar preso na janela. A cortina branca a ondular lentamente, sugerindo silhuetas de árvores e um céu azul lá fora. «Não sei porque é que me prolongam o sofrimento. Já vivi o que tinha a viver. Uma vida boa, uma vida justa, a vida que eu escolhi. Talvez para alguns tenha sido uma vida miserável, humilde demais. Para aqueles que se deslumbram, que se deixam encadear pelo que está no cimo da montanha. Mas para mim, agora que olho para trás, foi o que quis. Não me arrependo. A minha montanha é sólida. Ou era, porque agora tudo é trémulo e frágil como os meus ossos. Até as minhas memórias.»

Engulo em seco e tento sorrir. O que posso dizer? Mentir descaradamente e afirmar que vêm aí dias melhores? Que foi bom enquanto durou? Que ainda bem que viveu a vida que quis? O que é que isso interessa daqui a uns meses, quando até essa certeza se esfumar, por entre um manto de confusão e pesadelos? Como explicar a alguém que nos explicou o mundo, que nada fará sentido daqui para a frente? Que todos os rostos se vão desfigurar, mesmo os mais queridos? Aperto-lhe a mão com mais força e aceno com a cabeça. As palavras não se querem soltar. Sinto-me estúpida e vazia, como a empregada que arrasta o carrinho de chá pela casa afora, provocando um barulho ensurdecedor, aterrador, de loiça e metal. Um barulho que a estúpida ignora que possa estar a incomodar os habitantes da casa. E lá vai ela, até ao próximo quarto, a falar alto e a derramar pela tijoleira a sua falta de respeito. Como se aquelas pessoas não merecessem que se fechem as portas com cuidado, que se lavem as chávenas com delicadeza, que se fale ao telefone num tom de voz normal. É que eles morrem todos. Não estão ali muito tempo. Não vale a pena uma pessoa se afeiçoar. E a maioria são surdos ou senis. Daqui a um bocado, nem se vão lembrar. Não lhe pagam para mais. É domingo. Tem de limpar a casa, abrir a porta às visitas e servir os lanches até chegar a enfermeira da noite.

«Tu é que me podias ajudar a sair daqui!» exclamou, com um olhar de clarividência. «A tua cunhada não me quis ajudar, mas tu vais ajudar-me, não vais? Prenderam-me aqui. Não querem que eu saia desta cama.»

«Mas se calhar é porque não pode sair. Ainda não está curada da sua perna.»

«Não... Eles têm medo que eu ande por aí, porque eu falo de noite e faço disparates a dormir. Tenho aquela doença, como é que se chama?»

«Sonambulismo?»

«Isso. A tua prima não sabia a palavra. Amanhã já lhe digo. Não sabia, mas parece que sou sonâmbula e prego-lhes sustos. Também pregava à minha mãe. Ela pensava que eu estava a dormir e eu estava a ler debaixo dos lençóis. Ralhava tanto comigo... Era analfabeta, mas disse-me logo que eu ia dar cabo da vista. E assim foi. Sempre usei estes óculos de fundo de garrafa e agora vou ter de ser operada aos olhos. Não vejo nada. Custa trezentos mil euros a operação. Ou três mil euros? Não sei. Agora já não posso ler. Eu que adoro ler. Não li o teu livro. Não consigo. O primeiro li. Três vezes. Primeiro leio o fim. Sempre fiz isso. Leio do fim para o princípio, porque não aguento de curiosidade. Depois leio uma segunda vez, do princípio para o fim, e às vezes uma terceira. Este não consegui ler, desculpa. Parece que estou a ver a minha mãe a entrar pelo quarto adentro e a perguntar o que é que eu estava a ler. Eram sempre coisas que não devia. Livros que a Renatinha roubava da biblioteca do pai, que era oficial da Marinha. Livros com linguagem muito ousada para a época. Mas eu dizia à minha mãe que eram livros da escola e escondia-os atrás do reposteiro. E ela, como era analfabeta, acreditava. Reposteiro, que palavras tão feia... Mas é assim que se diz, não é? Não havia livros na minha casa, mas eu punha a mão em qualquer um que encontrasse. Sempre tive uma avidez pela leitura, pelo conhecimento. Sempre fui muito curiosa. Também tinha um vizinho a quem pedia "O Século" emprestado. Era o Jorge. Um gordo, assim meio seboso e aparvalhado. A mãe dele, que era feirante, comprava "O Século" porque queria que ele fosse instruído, mas ele não queria saber disso para nada. Então, eu pedia-lhe para levar o jornal para casa e devorava-o até à manhã seguinte. Depois deixava-o lá direitinho, debaixo da porta. A mãe dele era feirante, mas sabia que o mais importante era estudar. Vê lá tu, naquela altura! E a Renatinha a levar-me os livros do pai, às escondidas. Encontrávamo-nos no ringue, mas eu não ia lá para dentro, porque tinha medo de levar com o disco na cabeça. Então sentava-me na cancela, a impedir o jogo. E elas ficavam todas furiosas e depois a Renatinha dizia que já não me emprestava mais livros... Estão todos mortos... Mas deixa-me olhar para ti. Estás tão bonita.»

Dou uma volta como uma menina pequena a exibir o vestido novo. A menina pequena que era quando nos conhecemos, num tempo em que eu falava pelos cotovelos. Agora não sei o que dizer. Queria ser essa menina pequena outra vez. Talvez começasse a contar uma história cor-de-rosa, daquelas que só as meninas pequenas sabem contar. E conseguiria tirá-la daquela cama para darmos um passeio de mãos dadas. Depois, a professora faria um traço num papel com um marcador grosso, o qual eu teria de completar com os meus lápis de cor. "Desenho dirigido", a minha actividade preferida nas nossas aulas. As crianças têm muito mais jeito para lidar com os adultos e com situações constrangedoras em geral. Sabem sempre o que dizer. Nunca ficam com nós na garganta.

«Quando sair daqui tenho de marcar uma consulta com um... com um... como é que se diz? Aquelas pessoas que tratam das coisas que as pessoas não sabem explicar?»

«Psicólogo?»

«Não, aqueles que tratam as pessoas que não percebem o que se passa na cabeça»

«Psiquiatra?»

«Isso, ainda ontem estive o dia todo a tentar dizer isso à tua nora, a Sa... como é que ela se chama? A tua nora? Não interessa. Psiquiatra. Gostava de falar com um e perguntar se é normal nuns momento estar aqui e, noutros, parece que já não estou, que não sou eu, não posso ser eu, não me lembro. Parece um pesadelo. Achas que ele me ajuda?»

«Claro que sim. Mas é normal estar confusa.»

«Eu estou aqui mas tenho uma casa, sabias? Não preciso de estar aqui. E a minha prima também tem uma casa... Estou cansada.»

«Sim, acho melhor descansar. Posso voltar para outra visita?»

«Podes. Gostei muito de te ver. Estás muito bonita.»

«Então eu volto. Descanse agora.»

Dou-lhe um beijo na testa e sorrio, enquanto choro por dentro. Para mim o dia ainda vai a meio. Tenho os meus amores à minha espera, o jantar para fazer, a semana de trabalho para preparar, uma vida inteira para construir. Para ela só há aquela janela, que em breve já nem o azul do céu permitirá vislumbrar, agora que o Outono chegou. Uma janela e mais um dia que nunca mais acaba. Mais um novelo de recordações que se misturam e misturam até se perder totalmente o fio à meada.

Saio e reparo que o meu carro é o único no parque de estacionamento. É domingo. Está sol. Poucos são os que estão dispostos a deixar que uma nuvem negra lhes estrague o fim-de-semana. Ignoram a importância do calor humano, de um afago, de um sorriso. Ignoram que os minutos que nos pesam no coração, por espelharem a efemeridade da nossa existência, levam alguma leveza ao coração dos que ali vivem os resquícios da sua. De qualquer forma, eles são velhos. Nem sabem que dia é. Não se vão lembrar.




Comentários

  1. Sensação bitter-sweet. :) Muito bonito o texto

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  2. Ai Filipa porque e que fazes isto? é complicado para quem conhece...
    e escreves tão bem...

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  3. Brilhante, parabens.

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  4. Obrigada a todos pelas vossas palavras

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  5. Fifi Silva... a tua escrita é leonina, cheia de sentimento e a real verdade da VIDA. Com a ajuda do vento e tempo, tentas rejubilar às consciências, mesmo daqueles seres humanos que minimamente tentam ser racionais... ESCRITORA... PARABÉNS PARABÉNS PARABÉNS... : )

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