A minha Infância morreu
A Dona Infância cirandava pela casa a uma velocidade estonteante. Admira-me que não tenha partido mais bibelôs, tal era a pressa com que passava de umas prateleiras para as outras com o pano cor-de-laranja. Pensando bem, partiu bastantes. A minha mãe ficava furiosa, não pelo acidente em si, mas porque a D. Infância nem sempre confessava o crime e deixava ficar lá o objecto arrumadinho, até ao dia em que alguém lhe tocava e reparava que estava partido. A mim dava-me jeito o desleixo, pois das poucas vezes que parti alguma coisa, fiz como ela, evitando um raspanete.
A Dona Infância andava sempre a correr, escada acima, escada abaixo, com as socas brancas a espancarem o chão, e nunca tinha tempo para brincar comigo. Assim, andava eu atrás dela a fazer perguntas e a contar histórias. Foge daí sua magana, dizia-me ela quando eu me sentava na cama que ela acabara de fazer. E eu ria-me muito, porque nunca tinha ouvido a palavra magana.
A Dona Infância chamava-nos meninos e levava-nos o lanche num tabuleiro. Pão com manteiga para um, pão com fiambre para outro, leite com chocolate para um, sem chocolate para o outro e ainda voltava para trás quando os meninos mimados diziam que afinal queriam bolachas. Eu não gostava que ela andasse para a frente e para trás, por isso, comia quase sempre o que ela trazia, mesmo que não me apetecesse.
A Dona Infância nunca fazia queixinhas aos nossos pais, por mais disparates que fizéssemos, e eram muitos, sobretudo quando convidávamos os amigos ou os primos para brincarem lá em casa. Deixava-nos fazer cabaninhas com os lençóis acabados de passar, deixava-nos escorregar pela escada num colchão, a fingir que estávamos a descer rápidos, deixava-nos pôr a televisão aos berros e saltar em cima da cama e nunca nos pediu para tirar os sapatos para não sujarmos o chão. Quando eu e o meu irmão nos pegávamos, a Dona Infância era o meu esconderijo e dizia fique aqui ao pé de mim menina, deixe lá estar o seu irmão. E eu ficava e deixava que me fizesse festinhas com as mãos ásperas.
A Dona Infância não sabia ler. Foi um choque para mim quando me apercebi disso. Um adulto que não sabia ler? Então nunca foi à escola? Não, menina. Porquê? Porque tive de ir ajudar os meus pais no campo. E lá não havia escolas? Não. E porque é que não aprendeu depois? Porque comecei a trabalhar e não tinha tempo. Então como é que sabe qual o autocarro para casa? Pelo número. E quando a sua filha leva recados no caderno como é que sabe o que é que está lá escrito? Ela lê para mim. E a sua filha nunca lhe ensinou? Não. Porquê? Porque ela tem mais do que fazer e tem de estudar muito. E como é que assina o seu nome nos testes? Com uma cruz. E eu ria-me, porque não sabia que era possível alguém não saber escrever o nome.
No dia seguinte, decidi ensinar a Dona Infância a ler. Tinha sete anos. Todos os dias, enquanto a minha mãe não chegava e a D. Infância não tinha outro remédio senão ficar comigo, ia buscar o meu livro da primeira classe e ensinava-lhe as letras. Primeiro as vogais, depois as consoantes, como eu tinha apreendido. A Dona Infância não tinha paciência nenhuma para aquilo. Já estava de casaco vestido e só olhava para o relógio a fazer contas de cabeça ao tempo que ia demorar a chegar a casa se perdesse o próximo autocarro. Meia hora de caminho, mais fazer o jantar para filha, mais arrumar a casa dela depois de horas a arrumar a nossa. E eu irritava-me porque era tão fácil ler e ela não queria aprender. Então, mandava-lhe trabalhos de casa, que ela levava na mala mas nunca fazia. Porém não desisti: só a larguei quando me certifiquei de que sabia escrever o seu nome.
A Dona Infância uma vez levou-me a casa dela. Fomos de autocarro, no catorze, e chegámos a um bairro com muito prédios e poucas árvores. O dela era verde seco. Não me lembro bem da casa, mas lembro-me da filha, a Luísa. Estava decidida a não gostar dela. Imaginava-a uma filha má, baixinha e carrancuda, que nunca tinha ensinado a própria mãe a ler. Deparei-me com uma mulher alta, ruiva, e sorridente. Tinha uma voz muito calma e um tom muito doce e piscou-me o olho antes de se fechar no quarto. Passei a gostar dela.
A Dona Infância um dia foi-se embora e eu chorei muito. Fiquei mesmo zangada com a minha mãe por ter permitido tal coisa, longe de saber as razões de uma e de outra. Ao longo dos anos fui-me cruzando com ela na rua e dava-lhe sempre um grande beijinho. Trabalhava numa outra casa ali perto. Também tem meninos? Perguntei numa das primeiras vezes em que nos encontrámos. Não, menina, é a casa de uma senhora velhota. E eu fiquei aliviada porque não ia haver outra menina para roubar o meu lugar.
Os anos passaram, eu deixei de a ver, mas mesmo depois de vir morar para Lisboa, ia tendo notícias suas. Volta e meia a minha mãe lá me dizia, sabes quem encontrei hoje na rua? A Dona Infância. Perguntou por ti e mandou-te um beijinho. E eu ria-me, porque me lembrava sempre dos seus beijinhos apressados, como toda ela. Até que um dia a minha mãe me disse, sabes quem morreu? A Dona Infância. E eu não achei graça nenhuma. Não tem graça nenhuma não nos podermos despedir das pessoas por quem temos algum carinho. Não tem graça nenhuma perder alguém que, embora muito distante, faz parte da nossa vida. Mas logo depois comecei a recordar os inúmeros episódios que vivemos juntas e não pude deixar de sorrir. Dela só retenho memórias boas. As memórias da minha Infância.
"Não tem graça nenhuma não nos podermos despedir das pessoas por quem temos algum carinho"
ResponderEliminarA despedida está, sem dúvida alguma, feita...
Parabéns Filipa, adorei conhecer a Dona Infância!
Obrigada Luís :)
ResponderEliminarTambém eu fiquei presa na frase que o senhor antes transcreveu... :) Não tem graça nenhuma mesmo!!! Mas foi uma linda homenagem sem dúvida! :)
ResponderEliminarBeijinho